sexta-feira, 24 de junho de 2011

O menino é pai do homem


A frase do poeta inglês Wordsworth serviu como título para uma crônica de Machado de Assis, e agora eu a “roubo” ao comentar o peso da infância em nossa vida adulta: pois nascemos da criança nascida de nossa mãe.
Nossa primeira raiz, a mais funda, vem do garoto alegre correndo com seus amigos ou maltratado numa família doente; está na menina que se sentia amada ou na que foi brutalizada.
Somos filhos daquelas crianças. Somos frutos do clima que havia em nossas casas: crescemos com o adubo do afeto, do bom humor e do respeito, e definhamos no veneno da excessiva exigência, ou da aridez – mesmo que houvesse brinquedos caros pelo quarto.
Nosso comportamento adulto é marcado, mas não fatalmente determinado pela infância. Ela deixou rastros, como sulcos no rosto ou num campo lavrado, em nossa memória consciente e, mais grave, naquela inconsciente - para serem decifrados e superados, e a gente se tornar mais livre e melhor.
As eternas lamentações sobre o pai ausente, a mãe controladora, poucos amigos ou irmãos indiferentes, nos impedem de abrir janelas para a vida, e dificultam inventar outros jeitos de construir nossa própria família quando adultos. Pois nos construímos até morrer.
Também até o fim guerreamos com aquelas arcaicas realidades ou fantasmas: anistiar uma infância difícil é trabalho de guerreiros, e guerrear é parte do destino humano.
Neste mundo em mudanças rápidas e complicadas, a família, a que nos foi legada sem escolha nossa, e a que criamos para nós (felicidade ou desastre), volta a ter grande importância.
Essa ênfase no conceito “família” como ponto de apoio e construção numa sociedade fragmentada se dá quando ela mesma sofre grandes transformações: os casamentos já não são para sempre (com exceções felizes ou sofridas). Crianças aprendem a lidar com novos sentimentos em relacionamentos novos: a namorada do pai, o companheiro da mãe, os meio-irmãos. Filhos tem muito mais liberdade: os pais, por medo ou desconhecimento, menos autoridade; quebraram-se padrões de comportamento que duraram décadas ou séculos, e ainda não se cristalizaram novos. Talvez nem se cristalizem mais, nessa cultura do efêmero que é a nossa.
Mas continuamos filhos das crianças que fomos (...)
...Ou nos ensinaram que filhos eram objeto nosso, nossa total responsabilidade – coisa assustadora -, ou que chegavam ao acaso às nossas mãos, numa relação impossível, pois não os devemos pegar com força para não maltratar, e danem-se limites e autoridade.
No meio de conceitos tão opostos, pode haver uma postura equilibrada, até onde se equilibram relacionamentos humanos. Filhos são pessoas: precisam crescer, amparados e cuidados pelo nosso amor – não podados pela nossa insegurança.
Se a vida é um desafio (por isso tão interessante), construir uma família pode ser – mais do que contratempo e contrariedade – fonte de crescimento e sabedoria.
Não se pode prever em que dose teremos tudo isso: depende da sorte, e depende de nós. Como agricultores, há de por mãos à obra: às vezes no barro, lidando com produtos agrotóxicos (ah, alma intoxicada...), esperando a chuva que não vem, combatendo a seca que mata e a peste que estrangula.
Mas quando a planta espia da terra escura e começa a crescer com folhinhas no vento e caule forte, tudo passa a ter outro sentido, sobretudo a nossa existência.
A criança que fomos continua nos parindo pela vida afora, como nós parimos, com amor e dor e encantamento, cada dia e cada noite, a esses filhos nossos – e a nós mesmos neles.


Lya Luft
Em outras palavras – Record 2006. p. 167-170.