sexta-feira, 29 de outubro de 2010

A gula


Só de pensar, minha boca se encheu d’água. Me vi comendo um bombom suíço, bem devagarzinho – aquele chocolate macio, recheado de licor, uma cereja vermelha dentro. Quantos prazeres se encontram num único bombom! É preciso ir devagar como em tudo que tem a ver com prazer. É grosseria enfiar o bombom inteiro na boca e comê-lo como porco. Primeiro é o prazer de tirar-lhe a roupa. A carne mulata vai se mostrando aos poucos, sugerindo... Depois vem o perfume, que atiça as glândulas salivares a secretarem seus sucos. A seguir, as delícias do gosto. Os dentes entram carinhosamente na carne macia que vão se abrindo, a ponta da língua testando a cereja guardada na concavidade escura cheia de licor. Mais uma mordidinha e o licor escorre, e a língua tem que trabalhar depressa para não perder nada... O gosto deve ficar rodando na boca, movido pela língua, misturando-se com nossos fluidos, excitando as papilas gustativas. Mas, depois de algumas rodada, o prazer do gosto pede uma realização maior. O gosto não é o bastante. Fosse bastante, bastaria cuspir o bombom depois de esgotados os prazeres do gosto e não haveria o perigo de engordar. Mas não. O prazer do gosto exige um outro para se sentir completo – é preciso engolir. O bombom, transformado numa pasta líquida, abandona a boca, lugar do gosto, e vai escorregando, deslizando, penetrando o esôfago até descansar no estômago. Esse prazer nada tem a ver com o gosto. É puramente tátil, o prazer da plenitude – o bombom penetra, enche a gente.
Ah! Que coisa refinada e deliciosa, especialmente agora que os bombons suíços me foram proibidos por causa da diabetes. O que provavelmente, não é o seu caso. Sem sofrer de diabetes, você pode se entregar, ainda que por breves momentos, aos prazeres da gula. A gula é um demônio saboroso, o que a torna especialmente perigosa. Eu, diabético, posso ser tentado. Mas não caio na tentação. A gula jamais me pegará. Quero viver. Muitas virtudes nada mais não que transformações de nossos medos.
A psicanálise reconhece uma curiosa dança dos prazeres – eles são capazes de abandonar seus locais de origem e se alojar num outro, que não é naturalmente seu. Fiquei a pensar se a gula não é um desses casos, um deslocamento dos prazeres sexuais para a boca. Porque no prazer sexual acontece assim mesmo: não bastam os prazeres vestibulares, é preciso penetrar. Serão boca, esôfago e estômago substitutos para os órgãos sexuais femininos?
Uma coisa é certa: é mais fácil ter prazer com a boca que ter prazer sexual. Os prazeres da gula estão sob controle de atos voluntários. Minha vontade domina todas as partes do ato de comer. Mas os prazeres sexuais são mais complicados. Aí a decisão cerebral não manda. Não acontece de você ter o bombom, querer comê-lo e não conseguir. Com sexo acontece. Que frustração! Que fome! Os prazeres do sexo podem levar à gravidez. Os prazeres da gula levam inevitavelmente à obesidade. A obesidade é uma gravidez sem esperança, que nunca vai parir, vai só crescer.
Prazer precisa de intermitência. Como no sexo. Depois do orgasmo, o corpo está satisfeito. É preciso esperar um tempo para que ele queira de novo. O prazer continuado deixa de ser prazer, transforma-se em dor. Pois é isso que o demônio da gula faz com quem se entrega a ela. Tudo começa com o prazer do bombom. Depois de muitos bombons, o corpo já não come mais pelo prazer dos bombons. O prazer já não está no gosto. Está no engolir.
O obeso não quer ser obeso. Tudo é complicado para ele – passar na borboleto do ônibus, sentar na poltrona do avião, amarrar os sapatos, comprar roupas, transar. Não gosta de se ver no espelho. Não gosta do jeito como os outros o olham. Sabe que a obesidade é feia, que faz mal à saúde, causa infarto, pressão alto, diabetes. Quer ser magro, elegante, bonito. Sabe que para ficar magro é preciso parar de comer.
Mas, lá pelas duas horas da madrugada, hora de solidão (os demônios amam as horas de solidão!), o demônio lhe fala sobre os bombons... Ele não está com fome. É o demônio que suplica, com voz chorosa: “Estou com vontade de comer uns bombons...”
Porém não há bombons no apartamento. Ele comeu todos enquanto via televisão. Pensa em se vestir e ir ao supermercado. Mas faz frio. Lembra-se então de que na cozinha há bolachas e leite condensado. Vai até aa cozinha, abre uma lata de leite condensado, lambuza as bolachas e vai devorando, enquanto o leite escorre pelos dedos. Mas ele não permite que o doce se perca – lambe os dedos, enfiando-os um a um na boca. Pena que os dedos não possam ser comidos... Ele não faz mais distinção entre bombons suíços e leite condensado com bolachas. Quem se entrega ao demônio da gula perde a capacidade de degustar. O prazer de degustar é substituído pelo prazer de se empanturrar.
Terminada a orgia da gula, alguns, como ato de penitência, se ajoelham contritamente diante do altar – a privada. Enfiam então o dedo na goela e vomitam o que comeram. É seu jeito de pedir perdão.



Rubem Alves
Sobre Demônios e Pecados

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

SILÊNCIO


O silêncio é o espaço onde as palavras nascem e começam a se mover.
Por vezes, as palavras porque as dizemos.
Dependem de nossa vontade de pensar, de falar, de escrever: pássaros engaiolados.
Mas no silêncio ocorre uma metamorfose.
As palavras se tornam selvagens, livres.
Elas tomam a iniciativa.
E só nos resta ver e ouvir.
Elas vêm como emissárias de um outro mundo,
Um mundo que não havíamos visitado antes.
Não, talvez o tenhamos visitado.
Talvez tenhamos nascido nele.
Mas foi esquecido quando o brilho dos reflexos nos fez esquecer nossas origens.
Cada poema é um testemunho desse mundo perdido.

Rubem Alves
Do universo à jabuticaba

Palavras


A todo o momento somos bombardeados com palavras.
Elas são muitas e esbarram em nós apressadas,
A maioria sem pedir licença.
Estas palavras são de diferentes tipos e diferentes sons,
Sem falar nas imagens que traduzimos e expressamos em palavras.
Todos nós portamos palavras enunciando-as ao mundo.
Que palavras são estas que falo?
Como falo?
Hoje digo que as palavras que porto destroem,
Minhas palavras inquietam, sacodem, desorganizam, bagunçam, implodem!
Pois são palavras que nasceram do silêncio,
Do escuro que desvendou meus verdadeiros desejos.
Por isso, as palavras subvertem, transgridem...
Às vezes precisam machucar para curar,
Para conscientizar.
As palavras sempre exigem uma resposta, uma tomada de posição.
As palavras são os alicerces de toda construção,
Pois são as palavras que tudo criam e que tudo transformam.
Estou prenhe de palavras,
E pronta para liberá-las ao mundo.
Palavras não são apenas palavras, jogadas ao vento...
Palavras são a própria vida.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Sussurros da madrugada


Tenho medo, muito medo.
Por isso, aperto tua mão com tanta força.
Mas sua presença não faz o medo partir,
Nem o desconforto desaparecer.
Eu não sei mais o que fazer...
Mas quando eu começo a ler as entrelinhas,
E paro de te fazer perguntas que você não entende,
A verdade começa a aparecer.
Olhar no espelho é embaraçoso,
E na maioria das vezes,
O que acreditamos que é nossa imagem real,
Na verdade é uma figura distorcida que vimos num espelho embaçado.
Quantas vezes interroguei a quem não devia interrogar,
E não interroguei quem deveria.
Foi então que descobri que sou humana,
E o quanto me enganei.
Eu acho que estava enganada a respeito de tudo...

Enganada sobre mim, sobre os outros, sobre a vida,
Quando fui tomada pela incerteza, me senti muito ameaçada.
O chão desapareceu de debaixo dos meus pés,

E eu comecei a tremer!
A insegurança apareceu tentando preencher o vazio deixado pelas certezas,
Que desabaram...
As fantasias aprisionam,
Mas dizer a elas que não são mais necessárias não é uma tarefa das mais agradáveis.
É como abandonar um vício qualquer,
Há sempre a crise de abstinência.
O vazio berrando para ser preenchido,
Não se ouve mais nada a não ser o corpo gritando,
Dando ordens para ser amarrado outra vez.
Apesar de viver tudo isso,
Creio que depois de uma noite difícil sempre vem uma bela manhã,
Trazendo consigo inúmeras possibilidades de um lindo recomeço.
Vou enumerar apenas algumas delas: consciência, verdade, liberdade, amadurecimento, felicidade...

Monólogo no submundo da culpa


A culpa só reverbera em quem se identifica com ela.
Por isso mesmo recebo calada o veredicto de culpada.
Eu nem sempre escapo ilesa de quem pensa que sabe o que é melhor para nós.
Transgredir apesar da culpa, apesar das censuras tem seu preço.
Aproveito-me do meu poder de transgressão para falar mesmo amordaçada.
Não tenho eu direito à defesa?
Que palavras disse eu que se tornaram tão insuportáveis de ouvir,
A ponto de você me manter calada?
Penso que concordar com o que lhe mostrei seria muito mais que seu orgulho poderia suportar,
Mas eu também acredito que lá no íntimo você sabe a verdade.
Por isso, reveste-me de culpa,
Por isso, julga-me condena-me, aterroriza-me,
Para que eu nunca mais desacate sua autoridade e lhe digas mentiras outra vez.
Você adotou o silêncio como discurso e este pretendia ser apenas ausência de palavras,
Mas eu prefiro acreditar que o silêncio pode ser ensurdecedor,
Acredito que o silêncio tem a minha voz, dizendo de novo e de novo
Aquilo que você não quer ouvir.
Não fui eu quem te roubou a paz, foi você mesma,
Pois a culpa só reverbera em quem se identifica com ela.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Um Corpo que Fala


“A revolta de Agnes não se manifestou jamais às claras. Ela cai doente”.

Quando eu era criança vivia doente... Não era nenhuma doença crônica, mas eu era uma criança que tinha uma saúde frágil. Diz a minha mãe que minha avó Margarida sempre pensava que eu morreria de uma hora para outra. Na verdade, eu tinha alguns problemas respiratórios e doenças normais de criança... Hoje eu tenho uma doença chamada dor crônica e ela sim fala de toda uma história que me corpo carrega.
Acredito que nossas doenças revelam quem somos e como lidamos com o mundo.
É algo como diga-me sua doença e te direi quem tu és... Não quero dizer com isso, que esta afirmação atinge em cheio todas as pessoas, aconteceu comigo e pode não ter acontecido com você. Mas uma coisa é fato: nossas crenças, pensamentos e sentimentos transformam nosso corpo através de reações químicas comandadas pelo cérebro. Em outras palavras, como disse Salomão, nós somos integralmente o que pensamos.
Penso que a doença é uma forma radical de dizer que precisamos mudar. Ela é um grito, um últimato que a vida dá após inúmeras tentativas frustradas de nos fazer entender a necessidade de sermos flexíveis.
Eu expresso pouco minhas emoções, desde cedo aprendi a silenciá-las, escondê-las debaixo do tapete do cotidiano. Expressar pouco minhas emoções, não significa que elas não existam, nem que elas sejam fracas. Eu as expresso pouco e as aprisiono em meu corpo, aí elas explodem, explodem meu corpo em forma de doença. O termo técnico para este fenômeno chama-se somatização. Não pense que falando assim faço apologia ao descontrole emocional, à impulsividade e às expressões emocionais desordenadas, nada disso, estou apenas pensando numa maneira de não usar a doença para expressar minhas emoções.
Concluí que para não deixar a doença falar por mim, é preciso uma reprogramação mental, que não é um processo simples. Este requer que crenças, pensamentos e certos estilos de vida sejam abandonados, mesmo que gradativamente, o que representa morte, luto, sofrimento. Mas a doença também produz um tipo de sofrimento, só que é um sofrimento desnecessário, improdutivo, que não produz nada além de desespero e confusão. A cura de muitas de nossas doenças passa pelo sofrimento. Mais uma vez quero reiterar que não faço apologia do sadomasoquismo, o que quero afirmar é que não há crescimento sem dor, sem amputações, sem cortes, sem raspar feridas inflamadas para que possam sangrar. Não há crescimento sem olhar para o espelho, e olhar para este nem sempre é uma tarefa agradável. Afirmar todas estas coisas numa cultura hedonista soa um tanto quanto sórdido, porém, não há outra forma de manter a lucidez num mundo onde somos literalmente obrigados a esconder nossas angústias tão próprias à natureza humana debaixo do tapete do consumo.
Tenho pensado muito nas crianças e na espontaneidade que as caracteriza. Adoro a espontaneidade das crianças, principalmente quando através desta elas nos fazem corar. Adoro a espontaneidade das crianças porque é exatamente esta uma das qualidades que preciso desenvolver para ter saúde.
Em casa, na escola e nas outras instituições sociais destruímos muitas características humanas através de um processo de coisificação, de desumanização, e é claro que pagaremos um preço enquanto indivíduos e sociedade. Ensinamos as crianças a serem dissimuladas, as ensinamos a ficar sentadas várias horas numa mesma posição, e elas aprendem muito bem a lição, não falando o que realmente sentem, cristalizando posturas e aprendendo a ser acomodados e imóveis.
Hoje mais do que nunca eu olho a educação e me reconheço nela.
A Educação é o meu grito de protesto, e penso que assim que ela tem que ser, um protesto contra a desigualdade, contra tudo o que nos desumaniza.
A educação tem que nos instrumentalizar para a crítica, para a transgressão, para a subversão.
É com o corpo que se educa.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Mantendo o controle emocional


O Controle Emocional é a habilidade de lidar com os próprios sentimentos, adaptando-os conforme a situação e expressando-os de maneira saudável para si e para o grupo no qual está inserido. O equilíbrio entre razão e emoção é o caminho mais adequado. Os excessos costumam trazer consequências prejudiciais às pessoas. A razão excessiva faz com que o sujeito vivencie e expresse pouco suas emoções, absorvendo para si toda a carga emotiva. A pessoa mais sensível, que explicita seus sentimentos com facilidade, age por impulso e gera situações sociais desconfortáveis. O conhecimento das emoções e sentimentos do sujeito, bem como, dos limites suportados é um primeiro passo para a busca do equilíbrio emocional. Lidar com a emoção e a razão em proporções que levam o sujeito a colocar-se de modo saudável diante das circunstâncias vividas poderá trazer um modo de vida estruturado, adequado à sociedade e, principalmente, saudável para si mesmo. Uma pessoa que é tomada pelas emoções, agindo de modo impulsivo, geralmente, envolve-se em relacionamentos conflituosos, perde oportunidades de trabalho, arrepende-se de suas atitudes, gerando tumulto em sua vida e na dos próximos. Por outro lado, um sujeito que reprime suas emoções, não necessariamente estará utilizando só a razão para resolver suas questões. As emoções podem afetar suas decisões e posicionamentos diante da vida, porém os sentimentos não são expressos. A falta de manifestação das emoções e dos pensamentos provoca dificuldades na comunicação com outras pessoas, decisões e atitudes pouco efetivas, dificuldades nos relacionamentos pessoais e sociais, e principalmente, a possibilidade de somatização da carga emotiva.
Essa nova geração de jovens adultos, de modo geral, foram crianças que expressaram mais suas emoções e seus desejos, o que é benéfico, pois puderam vivenciar sentimentos e entrar mais em contato consigo mesmo. Tiveram oportunidades de serem autênticos. Porém, tiveram essa experiência com pouca capacidade de um adulto em impor limites, e até mesmo, saber lidar com suas próprias emoções diante das situações difíceis.É uma geração que sabe lidar pouco com suas frustrações, mas que possui potencial para adquirir equilíbrio emocional, se assim se propuserem a buscá-lo. Lidar com frustrações é sofrido e angustiante Diante dessa dificuldade, muitos acreditam que o caminho é eliminar a emoção da vida. Mas, esquecem que, na tentativa de eliminar a emoção, além de não vivenciar frustrações, tristezas, angústias, ansiedades, também não se vive amor, carinho, alegria, felicidade, conquistas. Porém, também as frustrações, sentimentos de injustiça podem atuar de um modo positivo, gerando força para mudanças de situações desagradáveis e sofredoras. A sociedade está buscando um ideal de sujeito que não é humano.
A emoção, como também a razão, faz parte do homem e de como ele se manifesta na vida, cada qual com sua singularidade. As diferenças enriquecem a vida e as pessoas, que podem aprender a viver com mais flexibilidade e se adequarem melhor às suas necessidades. A medida do descontrole emocional é aquela que prejudica a sociedade e o sujeito. Se uma pessoa não consegue lidar com a frustração do trânsito e tem ataques de fúria, dirigindo de modo imprudente e cometendo crimes, coloca a sociedade em risco. O sujeito que não consegue lidar com a discordância de seu pensamento, e perde seu trabalho por um comportamento impulsivo, coloca a si mesmo em risco. Nesses casos, é necessária a busca de ajuda profissional. Uma terapia poderá trazer benefícios ao lidar melhor com suas emoções e sentimentos.

Claudia Finamore

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Manifesto dos Brancos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Este texto é um manifesto escrito e subscrito por brancos que compõem a comunidade escolar da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Ele é uma retumbante admissão pública, por nossa parte, de que vivemos em um contexto de exclusão estrutural de negros e indígenas dos benefícios e espaços de cidadania produzidos por nossa sociedade e onde, ao mesmo tempo, é produzida uma teia de privilégios a nós brancos, que torna completamente desigual e desumana nossa convivência. Somos opressores, exploradores e privilegiados mesmo quando não queremos ser. O racismo não é um "problema dos negros", mas também dos brancos. É pelo reconhecimento destes privilégios que marcam toda nossa existência, mesmo que nós brancos não os enxerguemos cotidianamente, que exigimos a imediata aprovação de Ações afirmativas de Reparação às populações negras e indígenas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
No Brasil vivemos em um estado de racismo estrutural. Já é comprovado que raça é um conceito biologicamente inadmissível, só existe raça humana e pronto. Mas socialmente, nos vemos e construímos nossa realidade diária em cima de concepções raciais. Portanto, raça é uma realidade sociológica. Não é uma questão de que eu ou você sejamos pessoalmente preconceituosos. Mas é só olhar para qualquer pesquisa que veremos como existe um processo de atração e exclusão de pessoas para estes ou aqueles espaços sociais, dependendo de sua cor. Não é à toa que não temos quase médicos negros, embora eles sejam a maioria nas filas dos postos de saúde; que quase não vemos jornalistas negros, mas estes são expostos diariamente em páginas policiais; que não temos quase professores negros, especialmente em posições com melhores salários, e vemos alunos negros apenas em escolas públicas enquanto, na universidade pública quase só encontramos brancos.
A situação dos indígenas não é diferente, quando eles ainda sofrem lutando pelo direito mínimo de ter suas terras e aldeias, mesmo isso lhes é surrupiado pelos brancos. Vamos parar com esta falácia de dizer que não aceitamos cotas raciais na universidade, porque não queremos ser racistas: se vivemos no Brasil, se fomos criados nesta cultura, se construímos nossas vidas dentro deste conjunto de relações onde a raça é um elemento determinante, somos todos racistas! Não fujamos da realidade. Não usemos a falsa desculpa de que não queremos criar divisões entre raças no Brasil. Nossa sociedade poderia ser mais dividida racialmente do que já é hoje?
O estudo de Marcelo Paixão intitulado "Racismo, pobreza e violência", compara o IDH dos brancos e dos negros dentro do Brasil. O IDH tenta medir a qualidade de vida das populações, combinando os três fatores que, por abranger, cada qual, uma imensa variedade de outros, seriam os essenciais para a medição: renda por habitante, escolaridade e expectativa de vida. Na última versão do IDH, de 2002, o Brasil ocupa o 73º lugar entre 173 países avaliados, mesmo possuindo todas as riquezas nacionais e sendo o 11º país mais desenvolvido economicamente no mundo. Porém, entre 1992 e 2001, enquanto em geral o número de pobres ficou 5 milhões menor, o dos pretos e pardos ficou 500 mil maior. [Consideram-se brancos 53,7% dos brasileiros; pretos ou pardos, 44,7%, que chamaremos, hora em diante de negros]. O estudo mostra que Brasil dos brancos seria, na média o 44º do mundo em matéria de desenvolvimento humano, ao passo que o Brasil dos negros estaria no 104º lugar!!!
Nada disso é novidade, porém, para quem aceita viver com os olhos minimamente abertos. Temos que reconhecer que vivemos num sistema estruturalmente racista, que se reproduz em cima de mecanismos constantes de exclusão e exploração dos negros e de privilégios naturalizados aos brancos. Em um sistema racista, pessoas brancas se beneficiam do racismo, mesmo que não tenham intenções de serem racistas. Nós brancos não precisamos enxergar o racismo estrutural porque não sofremos diariamente diversos processos de exclusão e tratamento negativamente diferencial por causa de nossa raça. Nossa raça (e seus privilégios) são tornados invisíveis dia-a-dia. Este sistema de privilégios invisíveis a nós brancos é que nos põe em vantagens a todo instante, por toda nossa vida, em todas as situações, e que destroça qualquer tentativa de pensarmos que estamos onde estamos apenas por méritos pessoais. Que mérito puro pode ter qualquer branco de estar no lugar confortável em que se encontra hoje, mesmo que tenha saído da pobreza, dentro de um sistema que lhe privilegiou apenas por ser branco, ao mesmo tempo em que prejudicou outros tantos apenas por serem negros?
Vamos apresentar uma breve listinha de circunstâncias em nossas vidas que expõem nossos privilégios de brancos e que, embora não percebêssemos, embora os víssemos apenas como relações naturais para nós, por sermos pessoas normais e "de bem", foram decisivas para nos trazer onde estamos (e por não serem vivenciados também por negros e indígenas, seu resultado é fazer com que seja tão desproporcional o número destas populações dentro da UFRGS, por exemplo): 1) Sempre pude estar seguro de que a cor da minha pele não faria as pessoas me tratarem diferentemente na escola, no ônibus, nas lojas, etc; 2) Estou seguro de que a cor da pele dos meus pais nunca os prejudicou em termos das busca ou da manutenção de um emprego; 3) Estou seguro de que a cor da pele dos meus pais nunca fez com que seu salário fosse mais baixo que o de outra pessoa cumprindo sua mesma função; 4) Posso ligar a televisão e ver pessoas de minha raça em grande número e muitas em posições sociais confortáveis e que me dão perspectivas para o futuro; 5) Na escola, aprendi diversas coisas inventadas, descobertas, grandes heróis e grandes obras feitas por pessoas da minha raça; 6) A maior parte do tempo, na escola, estudei sobre a história dos meus antepassados e, por saber de onde eu vim, tenho mais segurança de quem sou e pra onde posso ir; 7) Nunca precisei ouvir que no meu estado não existiam pessoas da minha raça; 8) Nunca tive medo de ser abordado por um policial motivado especialmente pela cor da minha pele; 9) Já fiz coisas erradas e mesmo ilegais por necessidade, e nunca tive medo que minha raça fosse um elemento que reforçasse minha possível condenação; 10) Posso ir numa livraria e perder a conta de quantos escritores de minha raça posso encontrar, retratando minha realidade, assim como em qualquer loja e encontrar diversos produtos que respeitam minha cultura; 11) Nunca sofri com brincadeiras ofensivas por causa de minha raça; 12) Meus pais nunca precisaram me atender para aliviar meu sofrimento por este tipo de "brincadeira"; 13) Sempre tive professores da minha raça; 14) Nunca me senti minoria em termos da minha raça, em nenhuma situação; 15) Todas as pessoas bem sucedidas que eu conheci até hoje eram da mesma raça que eu; 16) Posso falar com a boca cheia e ficar tranqüilo de que ninguém relacionará isso com minha raça; 17) Posso fazer o que eu quiser, errar o quanto quiser, falar o que eu quiser, sem que ninguém ligue isso a minha raça; 18) Nunca, em alguma conversa em grupo, fui forçado a falar em nome de minha raça, carregando nas costas o peso de representar 45% da população brasileira; 19) Sempre pude abrir revistas e jornais, desde minha infância, e estar seguro de ver muitas pessoas parecidas comigo; 20) Sempre estive seguro de que a cor da minha pele não seria um elemento prejudicial a mim em nenhuma entrevista para emprego ou estágio; 21) Se eu declarar que "o que está em jogo é uma questão racial" não serei acusado de estar tentando defender meu interesse pessoal; 22) Se eu precisar de algum tratamento medico tenho convicção de que a cor da minha pele não fará com que meu tratamento sofra dificuldades; 23) Posso fazer minhas atividades seguro de que não experienciarei sentimentos de rejeição a minha raça.
Esta realidade destroça meu mito pessoal de meritocracia. Minha vida não foi o que eu sozinho fiz dela. Muitas portas me foram abertas baseadas na minha raça, assim como fechadas a outras pessoas. A opção de falar ou não em privilégios dos brancos já é um privilegio de brancos. Se o racismo, e os privilégios dos brancos são estruturais, as ações contra o racismo devem ser também estruturais. Racismo não é preconceito: racismo é preconceito mais poder. Se não forçarmos mudanças nas relações e posições de poder em nossa sociedade, estaremos reproduzindo o racismo que recebemos. E agora chegou a hora de a universidade dizer publicamente: vai ou não vai "cortar na própria pele" o racismo que até hoje ajudou a reproduzir, estabelecendo imediatamente Cotas no seu próximo vestibular? Se mantivermos o vestibular "cego às desigualdades raciais" estaremos, na verdade, mantendo nossos olhos fechados para as desigualdades raciais que nós mesmos ajudamos a reproduzir sociedade afora.
Nós, brancos da universidade que assinamos esta carta já nos posicionamos: exigimos cortar em nossa própria pele os privilégios que até hoje nos sustentaram. Cotas na UFRGS já!

Adestramento Cristão




Ariovaldo Jr

Crente é um bicho estranho. Você grita “AMÉM?” e ele responde gritando o mesmo. Se perguntar pela segunda vez, ele responderá mais alto. Se no meio do louvor você gritar “pule na presença do Senhorrrrrrrr”, então eles pulam. Se você dançar de modo estranho, verá correspondência imediata nas pessoas.Sua linguagem é facilmente influenciável por jargões. Basta pegar qualquer expressão bíblica cujo significado seja obscuro para a maioria, e pronto! Também colam as expressões inventadas que possuem aparência de espiritual, como por exemplo “ato profético”. Difícil de crer que nem existe esta expressão na Bíblia né?Facilmente também estereotipamos outras coisas que fazem do crente um ser quase alienígena: os lugares que frequenta, o conteúdo de suas conversas e a aversão às coisas “do mundo”.Pena quem os crentes não são condicionados a obedecer a todo tipo de “comando”. Parece que o adestramento a que foram submetidos possui limitações. Nem todos aceitam sugestionamentos que os levem a renunciar a seus interesses; ou dividirem suas posses com os necessitados; ou mesmo disponibilizar tempo para aqueles que estão abandonados em asilos, orfanatos e nas ruas.Ah… antes que eu me esqueça, quero deixar claro que amo os crentes. E exatamente por ser um deles é que me incomodo tanto com estas coisas incompreensíveis que aceitamos passivamente em nossa conduta.Posso ouvir (ler) um “Amém” nos comentários?! rs