sábado, 2 de julho de 2011

Quanto merecemos



Um psicanalista me disse um dia: “Minha profissão ajuda as pessoas manterem a cabeça à tona d’àgua. Milagres ninguém faz”.
Nessa tona das águas da vida por cima da qual nossa cabeça espia – se não naufragarmos de vez -, somos assediados pela idéia de que o ser humano é um animal que deu errado.
A maioria das pessoas que conheço, se fizesse uma ainda que breve terapia, haveria de viver melhor. Os problemas continuariam ali, mas a gente aprenderia a lidar com eles.
Sem querer fazer uma interpretação barata ou subir além do chinelo, mas como qualquer pessoa que tenha em sua hora lido Freud e companhias, penso nas rasteiras que o inconsciente nos passa.
Uma delas: o quanto nos atrapalhamos por achar que merecemos pouco.
Eu acho que merecemos muito. Nascemos para ser bem mais felizes do que somos – mas nossa cultura, nossa sociedade, nossa família não nos contaram essa história direito. Fomos onerados com contos de ogros sobre culpa, dívida, deveres e... mais culpa.
Somos demais rígidos, ou controlados: somos pouco naturais.
Nas armadilhas do inconsciente, que é onde nosso pé derrapa, lemos um letreiro pérfido: Eu não mereço ser feliz. Quem sou eu para estar bem, ter saúde, ter alguma segurança e alegria? Não mereço afetos razoavelmente seguros, menos dissabores. Não mereço nova chance. Nada disso. Não nos ensinaram que “Deus faz sofrer a quem ama?”
Portanto, se algo começa a ir muito bem, possivelmente daremos um jeito de que desmorone.
Vivemos o efeito de muita raiva acumulada, muitos mal-entendidos nunca explicados, mágoas infantis, obrigações excessivas e imaginárias. Somos ofuscados pelo ideal da mãe santa, da esposa imaculada e do marido poderoso, dos filhos mais-que-perfeitos, do patrão infalível e do governo confiável. Sofremos ao peso do quanto “devemos” a todas essas entidades, inventadas: por trás delas existe apenas gente, tão frágil quanto nós.
Velhos fantasmas que nos questionam, mão na cintura, sobrancelha irada:
“Ué, você está quase se livrando das drogas, está quase conquistando a pessoa amada, está quase se equilibrando sua relação com a família, está quase obtendo sucesso, vive com alguma tranquilidade financeira... será que você merece? Veja lá!”
Ouvindo isso, assustados réus, num ato nada falho damos um jeito de nos boicotar – coisa que, aliás, fazemos demais nesta curta vida.
Escolhemos a droga em lugar da saúde; nos fechamos para os afetos em lugar de lhes abrir espaço; corremos em busca de mais dinheiro do que precisaríamos; se vamos bem em uma atividade, queremos trocar; se uma relação floresce, viramos críticos mordazes ou traímos o outro, dando um jeito de podar carinho, confiança ou sensualidade.
No território obscuro do inconsciente – que a psicanálise nos ensinaria a arejar -, ainda nos consideramos meninos e meninas malcomportados que merecem castigo.
Quem sabe precisamos de conserto: se encontrarmos uma oficina de almas boa, barata, perto de casa – ah, e que não seja desonesta demais.

Lya Luft
Em outras palavras – Record 2006. p. 183-185.

2 comentários:

Ligia disse...

Ah, Lya Luft e minha amiga Paula! Vocês realmente sabem ler almas!
"Boicotar" - essa foi a palavra que mais me chamou atenção no texto da Lya. É impressionante como faço isso diariamente.
Ainda essa semana falei com uma amiga sobre a necessidade do ser humano uma vez na vida fazer terapia. Creio que o mundo seria um pouco melhor!

Clara Rohem disse...

Lindo o texto! Obrigada por compartilhar ;)