sexta-feira, 29 de outubro de 2010

A gula


Só de pensar, minha boca se encheu d’água. Me vi comendo um bombom suíço, bem devagarzinho – aquele chocolate macio, recheado de licor, uma cereja vermelha dentro. Quantos prazeres se encontram num único bombom! É preciso ir devagar como em tudo que tem a ver com prazer. É grosseria enfiar o bombom inteiro na boca e comê-lo como porco. Primeiro é o prazer de tirar-lhe a roupa. A carne mulata vai se mostrando aos poucos, sugerindo... Depois vem o perfume, que atiça as glândulas salivares a secretarem seus sucos. A seguir, as delícias do gosto. Os dentes entram carinhosamente na carne macia que vão se abrindo, a ponta da língua testando a cereja guardada na concavidade escura cheia de licor. Mais uma mordidinha e o licor escorre, e a língua tem que trabalhar depressa para não perder nada... O gosto deve ficar rodando na boca, movido pela língua, misturando-se com nossos fluidos, excitando as papilas gustativas. Mas, depois de algumas rodada, o prazer do gosto pede uma realização maior. O gosto não é o bastante. Fosse bastante, bastaria cuspir o bombom depois de esgotados os prazeres do gosto e não haveria o perigo de engordar. Mas não. O prazer do gosto exige um outro para se sentir completo – é preciso engolir. O bombom, transformado numa pasta líquida, abandona a boca, lugar do gosto, e vai escorregando, deslizando, penetrando o esôfago até descansar no estômago. Esse prazer nada tem a ver com o gosto. É puramente tátil, o prazer da plenitude – o bombom penetra, enche a gente.
Ah! Que coisa refinada e deliciosa, especialmente agora que os bombons suíços me foram proibidos por causa da diabetes. O que provavelmente, não é o seu caso. Sem sofrer de diabetes, você pode se entregar, ainda que por breves momentos, aos prazeres da gula. A gula é um demônio saboroso, o que a torna especialmente perigosa. Eu, diabético, posso ser tentado. Mas não caio na tentação. A gula jamais me pegará. Quero viver. Muitas virtudes nada mais não que transformações de nossos medos.
A psicanálise reconhece uma curiosa dança dos prazeres – eles são capazes de abandonar seus locais de origem e se alojar num outro, que não é naturalmente seu. Fiquei a pensar se a gula não é um desses casos, um deslocamento dos prazeres sexuais para a boca. Porque no prazer sexual acontece assim mesmo: não bastam os prazeres vestibulares, é preciso penetrar. Serão boca, esôfago e estômago substitutos para os órgãos sexuais femininos?
Uma coisa é certa: é mais fácil ter prazer com a boca que ter prazer sexual. Os prazeres da gula estão sob controle de atos voluntários. Minha vontade domina todas as partes do ato de comer. Mas os prazeres sexuais são mais complicados. Aí a decisão cerebral não manda. Não acontece de você ter o bombom, querer comê-lo e não conseguir. Com sexo acontece. Que frustração! Que fome! Os prazeres do sexo podem levar à gravidez. Os prazeres da gula levam inevitavelmente à obesidade. A obesidade é uma gravidez sem esperança, que nunca vai parir, vai só crescer.
Prazer precisa de intermitência. Como no sexo. Depois do orgasmo, o corpo está satisfeito. É preciso esperar um tempo para que ele queira de novo. O prazer continuado deixa de ser prazer, transforma-se em dor. Pois é isso que o demônio da gula faz com quem se entrega a ela. Tudo começa com o prazer do bombom. Depois de muitos bombons, o corpo já não come mais pelo prazer dos bombons. O prazer já não está no gosto. Está no engolir.
O obeso não quer ser obeso. Tudo é complicado para ele – passar na borboleto do ônibus, sentar na poltrona do avião, amarrar os sapatos, comprar roupas, transar. Não gosta de se ver no espelho. Não gosta do jeito como os outros o olham. Sabe que a obesidade é feia, que faz mal à saúde, causa infarto, pressão alto, diabetes. Quer ser magro, elegante, bonito. Sabe que para ficar magro é preciso parar de comer.
Mas, lá pelas duas horas da madrugada, hora de solidão (os demônios amam as horas de solidão!), o demônio lhe fala sobre os bombons... Ele não está com fome. É o demônio que suplica, com voz chorosa: “Estou com vontade de comer uns bombons...”
Porém não há bombons no apartamento. Ele comeu todos enquanto via televisão. Pensa em se vestir e ir ao supermercado. Mas faz frio. Lembra-se então de que na cozinha há bolachas e leite condensado. Vai até aa cozinha, abre uma lata de leite condensado, lambuza as bolachas e vai devorando, enquanto o leite escorre pelos dedos. Mas ele não permite que o doce se perca – lambe os dedos, enfiando-os um a um na boca. Pena que os dedos não possam ser comidos... Ele não faz mais distinção entre bombons suíços e leite condensado com bolachas. Quem se entrega ao demônio da gula perde a capacidade de degustar. O prazer de degustar é substituído pelo prazer de se empanturrar.
Terminada a orgia da gula, alguns, como ato de penitência, se ajoelham contritamente diante do altar – a privada. Enfiam então o dedo na goela e vomitam o que comeram. É seu jeito de pedir perdão.



Rubem Alves
Sobre Demônios e Pecados

Nenhum comentário: